Como que em busca de um Elixir da Juventude ou da Terra Prometida, organizações de todo o mundo investem fortunas -em recursos financeiros, humanos e de tempo- em suntuosos projetos de Transformação Digital. Existe algo, quase que encantadoramente mágico, que as faz crer que seus investimentos as farão alcançar um suposto momento em que finalmente terão “chegado lá” ao final do processo que as conduzirá para a tão almejada “Transformação”.
Mesmo agora -sim, 2018- há empresas iniciando o que chamam de (ou acreditam ser) seu Projeto de Transformação. Ironicamente, ao longo dos últimos dez ou quinze anos, por inúmeras ocasiões ouvi lamentos de CMOs, CDOs ou mesmo de CEOs, acerca de imensas somas de dinheiro desperdiçadas em inúmeras frentes, que iam desde refazer seus sites, desenvolver apps inovadores ou imprimir pesados investimentos em mídia online até abrir canais sociais ou comprar software caríssimos. Entretanto, por algum motivo que fugia à compreensão daqueles top executives, tais esforços foram em vão e não transformaram efetivamente nada.
O problema, curiosamente, não reside na ausência de recursos, acesso a soluções, fornecedores qualificados ou de equipes de altíssimo nível. O obstáculo revela-se na dificuldade das organizações em harmonizar suas expectativas do que é ou deveria ser o seu estado desejado e o que elas acreditam ou entendem que deva ser feito para se chegar lá. De forma ainda mais completa e aprofundada, a origem e causa desta lacuna de expectativas (e, portanto, obviamente antecessora e pré-requisito para o problema) se encontra na dificuldade em não compreender -ou aceitar- o que é a realidade; o mundo concreto no qual a organização está inserida.
Na busca ilusória por uma solução, similarmente à larva que almeja ser uma bela borboleta, a empresa entra no casulo da “Transformação Digital” e aguarda seu suposto processo de maturação para oportunamente despertar do estado preliminar em uma maravilhosa e renascida organização, pronta para enfrentar os desafios do “novo mundo digital” com a pompa e sofisticação de uma borboletinha.
A questão é que não há uma “Transformação Digital”. Simples assim.
Olhe lá fora por um segundo. O que vê? Já faz alguns anos que convivemos com robôs, inteligência artificial, realidade virtual, hologramas. Nossos filhos ou netos têm outro entendimento do que significa “TV”, não compreendem quando a internet “cai” e clicam em revistas de papel aguardando, inocentemente e em vão, que algo aconteça na “tela”. Redes Sociais nascem e morrem; canais e ferramentas estão na moda e caem em desuso. Os diversos devices nunca foram tão perecíveis. Profissões morrem, outras nascem. As estratégias e táticas que lograram sucesso ontem não mais fazem sentido hoje.
Paradigmas diversos são sistematicamente quebrados. A lista de disrupções e evoluções é infindável e não ocorre -certamente não exclusivamente- dentro dos casulos corporativos. Em vez disso, as sucessivas transformações passam a ser simplesmente “mais um dia”. Exatamente isso: um dia normal, como foi ontem e como será amanhã. Não se trata de um momento no tempo, entre o estado anterior e o futuro da organização, mas seu “business as usual”: o cotidiano ordinário e trivial dos negócios. A tal “transformação” é o novo “normal”.
Uma vez que, concretamente, o estado de transformação constante é o dia-a-dia com o qual devem se acostumar para permanecer vivas em um ecossistema sob ininterruptas e abrutas rupturas, vamos então quebrar em tópicos quais os erros trouxeram ou, mais importante, o que ainda mantém presas as organizações dentro de seus casulos:
As inovações tecnológicas são criadas, lançadas, adotadas (e, por vezes, extintas) cada vez mais rapidamente. Lá fora, inteligências artificiais já dominam partes do nosso cotidiano de maneira que sequer percebemos. Coexistimos com robôs com a mesma naturalidade, ao passo que os limites da medicina rumo à vida virtual eterna são testados a todo momento. Enquanto sociedade, exigimos e curtimos tais avanços, bem como tendemos a aceita-los com mais gosto e bolsos mais abertos.
Nesse cenário, o primeiro desafio é compreender que o tempo de “passar por um período de transformação” (assim como o faz a larva) já é história. A questão agora é como sobreviver numa atmosfera de permanente mutação. Ir para o casulo é tão eficaz quanto a estratégia do avestruz face ao perigo.
O segundo problema é, não satisfeito em confinar a transformação a um período ou um projeto, insistir em vê-la como sendo “digital”. Não há um “digital” e um “não-digital”, seja em qual aspecto da sociedade olhar: desde os relacionamentos interpessoais até grandes iniciativas entre megacorporações, passando por suas atividades de Marketing, Comercial, RH, Financeiro, TI, Jurídico ou qualquer que seja a área/equipe da organização. Esqueça essa separação de uma vez!
O que existe, sim, é um peso particularmente marcante dos impactos das tecnologias no cotidiano organizacional. Isso está longe de significar que a responsabilidade ou foco da evolução seja “digital”.
As barreiras entre “Digital” e “Tradicional” sempre foram ligadas às nossas próprias amarras mentais enquanto gestores, empresários, acadêmicos. Ano após ano, independente da empresa com a qual tenha trabalhado (brasileira, estrangeira, local, multinacional, do setor A ou do setor B…) os esforços em deixar a organização pronta para conviver harmonicamente com o novo cenário sempre derrapam quando extrapola-se as áreas óbvias (“Digital”, Marketing, Comunicação, TI) e passa-se a movimentar outros setores da empresa.
Nesse momento, seja por influência da cultura organizacional, das barreiras feudais ou das deficiências de abstração e capacidade de adaptação dos recursos humanos da empresa, as forças de poder e de política acham sua forma de sabotar a evolução da empresa. Performam como um agente indesejado que opta por abrir o casulo antecipadamente, por não querer ou conseguir passar pelo doloroso -mas vital- processo evolutivo da almejada borboleta.
Justamente devido aos gaps aqui descritos, que certamente irão cruzar seu caminho em algum momento, o derradeiro e crucial ponto de falha crítica é o não envolvimento da alta gestão da empresa. Historicamente, mudanças estruturais na organização só acontecem se forem conduzidas de maneira “top-down”. Tal fenômeno é corroborado por décadas e décadas de estudos científicos, sistematicamente testemunhando cada grande momento de mudança significativa ou advento de inovações tecnológicas desde que há registro de estudos sobre administração e negócios.
O board, os VPs, Diretores e o próprio CEO (Presidente, dono, enfim) devem ter participação ativa, como provavelmente há muito não o fazem, em cada respiro da empresa no dinâmico ambiente atual. Imagine que os líderes devem se portar como pais de um paciente retornando do coma, dependentes que seus responsáveis coloquem a mão na massa, dando comida na boca, ajudando-o a se vestir, a performar suas funções mais rudimentares e introduzindo-o pouco a pouco de volta ao convívio de uma vida normal.
Naturalmente, a despeito do cenário aparentemente implacável que desenhei, não apenas há luz no fim do túnel, como há organizações que já estão vivendo e prosperando lá na nova realidade, para além do túnel.
Mais que isso, a solução para os problemas tão comuns aqui expostos é racional e simples. A dificuldade em superar o momento atual e se manter vivo quando a competição vier ataca-lo se assemelha ao dependente que precisa largar certo vício: racional e friamente, compreende que algo precisa ser feito para manter-se vivo na nova realidade. Ele sabe que o correto é cortar os males pela raiz e recomeçar (não necessariamente do zero!). Deve rever detalhadamente sua atual vida de decadência silenciosa: cada unidade de negócios, cada departamento, cada profissional, cada processo, fluxos, soluções, fornecedores, tudo.
Entretanto, quando se olha para o todo, de fato a solução parece difícil, distante, talvez irrealista ou inatingível. Não é tarefa fácil mudar velhos hábitos e questionar esqueletos em seus armários do dia para a noite. É tanta mudança, tantos recursos a investir, tanto tempo a ser despendido… dá vontade de fazer uma rápida “lipo”, em vez de uma dieta de reeducação alimentar! Voilá!
Gostaríamos tanto de acreditar que após a intervenção jamais retornaremos a ganhar tanto peso e voltarmos a ser dinossauros. Entretanto, aquela vozinha cutuca na cabeça. Lá no fundo, lá junto com seu travesseiro, você sabe que, por mais doloroso, difícil e demandante que seja, se quiser ter uma vida longa e saudável, não há atalhos, fórmulas mágicas ou transformações digitais que resolvam. Para ter força, não desanimar e conseguir, pouco a pouco, superar seus demônios, a receita já existe: é preciso iniciar e fazer o certo hoje. Amanhã, focaremos amanhã. Dê o primeiro passo, seja realista, mas firme e obstinado.
Sob a ótica de que é preciso iniciar imediatamente e por algum lado, aí sim entramos no Digital. No rol das infinitas necessidades de ajustes e face ao fantasma de um imenso desafio que nos aguarda, o Marketing e, em particular, o Digital é o primeiro passo a ser dado.
Por questões inerentes à própria natureza das mudanças no mercado e seus atores -fundamentadas, essencialmente, em inovações tecnológicas- o primeiro dia do resto de nossas vidas deve começar justamente no Digital e é dessa maneira que a área em questão, liderada pelo CMO ou CDO (ou quem representar o último responsável pelo “Digital” na organização), precisa ser encarada: não como um fim em si mesma, sequer como protagonista ao longo da trama, mas como o primeiro passo e a estrutura basal que permitirá a empresa a mudar seus hábitos mais íntimos e conseguir viver em harmonia com as mudanças regulares e abruptas que cada vez mais ditarão o ritmo da sociedade e do mundo dos negócios.
Após a solidificação da estrutura do novo ecossistema organizacional, o processo deve extrapolar as barreiras do Marketing/Digital e contaminar, de forma tão irreversível quanto positiva, outros departamentos, áreas, linhas de negócios, estratégias e cada parte da empresa – sem exceção!
No momento em que as necessidades de mudança já ultrapassarem as barreiras da área de Marketing/Digital dentro da organização, é provável que o CMO/CDO já não consiga ter forças, competências ou mesmo responsabilidade para fazer seguir o novo rumo. É aqui que o board deve assumir seu papel formal de liderança e dar continuidade aos passos, um por um, respeitando as particularidades e timing de cada empresa, mas sem parar jamais; seguindo firme rumo ao único propósito: sobreviver.
Entenda e aceite uma coisa: já há um “Netflix”, um “Uber” ou um “AirBnb” em seu mercado. Fato. Pode ser que você ainda não o conheça ou talvez ele próprio não saiba ainda como exatamente irá incomodar sua empresa. Entretanto, da mesma maneira como houve um Cavalo de Tróia, como David venceu Golias e como a Amazon e o Alibaba estão destroçando líderes de mercado após mercado, o competidor (por ora) anônimo irá encontrar seu caminho.
Você está muito confortável ou talvez seja muito autocentrado para percebe-lo nas beiradas. Quiçá, sua emoção insista em afogar a voz da razão que eventualmente arranha por detrás de sua cabeça, questionando quanto tempo mais terá de vida seguindo o mesmo caminho que o trouxe até sua atual posição tão privilegiada.
Reflita por um segundo acerca das tantas e tantas empresas e mercados que já morreram ou estão em xeque. Recuse a miopia estratégica e aceite que as mudanças serão cada vez mais rápidas e em saltos mais largos.
A conclusão é tão simples quanto impiedosa: ou aceita a realidade como ela o é, agora, ou arriscará perder tudo. Pode não ser hoje ou ano que vem, mas certamente em cinco ou dez anos. A questão é que talvez você sequeter tenha uma chance -uma oportunidade- quando, enfim, decidir se movimentar.